domingo, 30 de agosto de 2015

Iceberg

   Dudu era uma criança quieta. Excessivamente quieta. Sempre estava acompanhado de seus fiéis fones de ouvido; no carro, na escola, na mesa de jantar. Assim, ele bloqueava as duas vias de comunicação: não precisava falar ou mesmo dar-se ao trabalho de ouvir. A verdade, no entanto, era que os fones estavam quase sempre estavam desligados. Só os usava para evitar que fosse incomodado, mas o fato é que ouvia tudo o que as pessoas diziam. Diziam, sobre ele e sobre os mais diversos assuntos, verdadeiros impropérios. Faziam devaneios mirabolantes, construíam suas verdades sob mentiras e acabavam por acreditar nas próprias ilusões propagadas. Ao fim de cada dia, Dudu estava certo de que fazia bem em isolar-se em sua própria mente.
    Por laços do destino e pela ascendência interplanetar, como diriam os oráculos do misticismo, ou talvez por uma mera junção entre oportunidade de ocasião e disposição de agir, Dudu conheceu Caio, um colega de sala um ano mais velho. Foi justamente quando este último viu de relance um adesivo de uma banda no caderno do menino e puxou assunto, ignorando o professor, que conduzia sua aula com o mesmo entusiasmo de quem comparece a um enterro. Estudavam juntos já havia dois anos e, se dependesse da boa vontade de Dudu de fazer novas amizades, estudariam por mais três sem trocar uma palavra.
    O que Dudu tinha de introvertido, Caio tinha de comunicativo. Conversava com todos e adequava, com certa fluidez e facilidade, sua personalidade às pessoas e aos momentos diferentes. Parecia querer causar uma boa impressão. Ao dialogar com uma pessoa, fazia questão de perguntar sobre seus gostos gastronômicos. Ora, quer coisa mais pessoal e, ao mesmo tempo, universal, que comida? Bobeira que o idioma mundial seja o amor; em verdade, este está em falta. Assunto verdadeiramente universal é comida. Além disso, este é um tema sem riscos; você jamais encontrará alguém que diga que não gosta de comida. O mesmo não se aplica a música, por exemplo.
     Caio muito frequentemente se pegava pensando o que diabos passava pela cabeça de Dudu. Enquanto ele, tagarela, articulava e exteriorizava seus pensamentos como que numa necessidade crescente em impor-se diante de um mundo com ideias tão erradas, o amigo se enclausurava numa concha e, lá, trancava suas opiniões a sete chaves. É evidente que, com o tempo, essa amizade floresceu, e o maior sinal disso era que Caio era uma das poucas pessoas para quem Dudu tirava os fones de ouvido. Assim, naturalmente, o mais velho conseguia, ocasionalmente, ter acesso a uma ou outra ideia de Dudu; porém, apesar de ser possível pescar alguns de seus pensamentos, isso só se dava mediante algum esforço, enquanto a maior parte dos pensamentos continuava submersa no fundo do oceano que era sua mente.
    Não era um tipo de incompreensão angustiante, mas havia, sim, uma certa inquietude que, para ele, tornava essa questão intrigante. Eram poucas as coisas para as quais Caio não tinha uma teoria; a introjeção de Dudu não seria diferente. "As pessoas mais silenciosas possuem as mentes mais barulhentas", Caio disse num disparate intelectual durante uma dessas conversas que tinha consigo mesmo. Anotou na penúltima página de seu caderno, para assim não esquecer tamanho jogo de palavras. Era arriscado dizer com toda a certeza que esta teoria era verídica, mas era muito provável que sim. Ora, não é preciso ver todo o iceberg para concluir que ele não pode ser plenamente compreendido apenas por sua ponta.
    Quando se pensava numa comparação entre os dois amigos, o que vinha à mente era uma curiosa mescla entre discrepância e semelhança. Sobre um contraste de personalidades e uma convergência de interesses foi construída uma amizade, bloco por bloco. Duas partes de um quebra-cabeça: mesmo sendo opostos, encaixavam-se.