quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Gelatina

    Era minha primeira vez na cidade. Um amigo, um dos mais pacientes que já tive, acompanhava-me pelo Passeio Público e não reclamava quando eu, turista do interior de outro estado, parava a cada dois minutos para tirar fotos.
    Perguntei:
    — Aquilo é uma capivara?
    Eu não fazia ideia do que essa pergunta desencadearia.
    Aparentemente, os dois anos de vivência na cidade não lhe passaram muitos conhecimentos sobre biologia, pois ele não soube me responder.
    — É uma cotia — disse a curiosa senhorinha ao meu lado.
    Eu jurava que cotia era um pássaro. Ri de mim mesmo e sorri para a mulher.
    — Gosto muito de animais, sabe? Minha mãe, que Deus a tenha, me trazia aqui antes mesmo de eu aprender a andar. Venho no Passeio Público há mais de setenta anos!
    Uma moça que estava passando parou para observar as cotias e, como quem não quer nada, acabou prestando atenção na entusiasmada senhorinha de cabelos brancos, que agora parecia feliz em ter uma audiência de inimagináveis três pessoas. Ela continuou:
    — Aliás, eu não gosto dos animais, eu amo os animais. Porque, bem... Gostar deles todo mundo gosta, não é? Principalmente no churrasquinho de domingo, no espeto. Mas amar, mesmo, é difícil.
    A mesma curiosidade despretensiosa que me fez perguntar sobre qual espécime de animal seria aquela que roía as cenouras fez com que eu soltasse também a próxima pergunta, em tom amigável de quem tenta conectar os pontos do que foi dito antes.
    — Então a senhora é vegetariana?
    Seus olhos arregalaram para mim.
    — Oh... Não, não sou. Mas gostaria muito de ser! — Sorriu.
    Não havia sido só eu; a moça que havia dado uma rápida pausa em sua caminhada (ou, pelo visto, não tão rápida, pois ainda estava absorta na conversa) também achou engraçado e riu um pouco.
     Continuou falando, e por um momento percebi como seus olhinhos brilhavam quando alguém a ouvia. Não tenho certeza como, mas o fato é que o assunto chegou em gelatinas vegetarianas.
    — Como assim? — perguntei eu. — Todas as gelatinas já não são vegetarianas?
    — Não, não! De jeito nenhum. As gelatinas de mercado são feitas de ossos de animais.
    Primeiro descobri que cotias não eram pássaros, e agora isso. Era um dia de descobertas. Fiquei boquiaberto, talvez mais por querer mostrar interesse na conversa do que propriamente por surpresa.
     A senhora, que por algum motivo carregava uma bolsa vermelha de papelão com escritas orientais estampadas, disse que havia uma receita de muitos séculos em sua família sobre como fazer gelatina vegetariana, e que seu neto adorava. Acabou contando sobre como teve que ir a uma cidade próxima para conseguir uma consulta médica para o pequeno menino, e sobre como "é uma onça quando mexem com sua família", mas não perdeu o fluxo de raciocínio nem por um momento: voltou à receita de gelatina vegetariana.
    Você, leitor ou leitora, mal deve estar aguentando-se na cadeira, tamanha a curiosidade para aprender a tal receita. Receio, porém, que não a lembro; e ainda que lembrasse, revelar esta fórmula seria um desrespeito à tradição familiar da amiga que fiz no Passeio Público. Mas se isso ajuda, lembro que um dos ingredientes é — pasme — folha de louro.
    Percebendo que o assunto talvez tivesse se prolongado até o limite do que seria socialmente confortável, a velhinha despediu-se. Minutos depois, minha mente persistia em pensar sobre o episódio que acabara de acontecer.
    A senhora possuía uma oratória de exímia narradora, além de gestos muito firmes. As veias saltadas em suas mãos davam a seu discurso um peso de autoridade — uma autoridade que somente a experiência de muitos anos poderia dar a alguém.
    Percebi que eu, meu amigo e a moça da caminhada demos um grande presente à adorável senhorinha aquele dia. Tudo o que ela desejava era alguém que a desse ouvidos. Reconheci parte de mim nela, e decidi que ficaria feliz se chegasse a sua idade com metade da lucidez que tinha.