sábado, 23 de janeiro de 2016

Milhonários

    Era uma vez uma civilização; ou pelo menos assim a chamavam. Localizava-se num amontoado de terra qualquer, num planetinha qualquer, no auge de sua insignificância cósmica.
    Na falta de uma opção melhor, os anciãos governantes decidiram centenas de anos antes que a unidade monetária dessa sociedade seria a espiga de milho. Era algo curioso, vejam vocês, pois o milho, que já era consideravelmente acessível antes — e talvez fosse exatamente este o motivo desta escolha tão específica, de modo que todos pudessem ser ricos —, passou a ser assustadoramente abundante.
    Enriquecer era uma tarefa particularmente difícil, devo dizer, pois quanto mais plantavam, mais insuficiente parecia ser sua riqueza, fazendo desta forma que precisassem plantar ainda mais milho. E assim plantavam, plantavam, plantavam, plantavam.
    Essa civilização se construiu em cima disto até que, em determinado ponto, o milho passou a ser produzido em cada canto do planeta. Para onde se olhasse havia milho. O horizonte era repleto de milho e ele próprio chegava a lembrar uma longa espiga.
    “Isto deve ser bom”, os leitores mais assertivos devem estar pensando consigo próprios. Afinal, todos teriam farto acesso a comida e a fome jamais viria a tomar lugar numa sociedade assim, certo? Errado. Ocorria que os habitantes deste planeta, sedentos por enriquecer, jamais comeriam sua própria unidade monetária, oras! Em vez disso, tomavam a especial cautela de deixar um pequeno espaço de terra fértil em seus terrenos — que ocupava apenas o mínimo necessário para a plantação de outras espécies de vegetais. Afinal, como poderiam eles continuarem plantando milho se morressem de fome? Estava fora de cogitação; morrer seria decerto um suicídio empresarial.
    E assim se deu início a uma irreverente batalha contra a morte. Ela, que atrapalhava os planos financeiros de tantos empreendedores, era uma difícil adversária, pois com o objetivo de sobreviver, as pessoas precisavam comprar alimentos de outros produtores ou mesmo plantar comida em espaço que poderia ser plantado milho. Assim, qualquer que fosse sua escolha, as pessoas ficavam mais pobres a cada dia de luta. Alguns mais espertinhos tentaram driblar a lógica, ignorando esta batalha e simplesmente continuando a plantar milho sem dar muita importância à comida, mas a morte logo tratou de ceifá-los e dar fim à sua acumulação de riquezas.
    Universidades inteiras foram construídas para desvendar os mistérios desta curiosa disciplina que ficou conhecida como Economilha. Magnatas surgiam do dia para a noite e na mesma velocidade tinham sua riqueza ultrapassada. Impérios caíam e ressurgiam das cinzas, um após o outro, até que fosse encontrada a solução para este paradoxal problema.
    O fim da história? Havia sido substituído pelo meio.

domingo, 10 de janeiro de 2016

Arte

    Quando ele abriu os olhos, viu flores. Borrões coloridos de tinta que despontavam e bailavam nas telas. Viu o céu, e com ele os pássaros em sua travessia para o norte. Viu os bosques da Alemanha do século XIX e viu a Mona Lisa. Não conseguia compreender tudo, é verdade, mas as formas que a princípio se apresentavam grotescas se revelavam, com um pouco mais de atenção, de uma beleza inestimável e, de repente, a gana de compreender tudo perdeu ela própria o seu sentido.
    Continuou a percorrer o museu com as pernas e com os olhos, observando cada obra como quem tenta perceber o que passava pela mente e pelo coração do artista em sua criação. Não era mera estética; era também gritaria, incompreensão e liberdade. Livre! Assim como os pássaros que vira, a arte havia de ser livre.
    Ele era Davi, era Pedro, era Júlio.
    Quando tornou a abrir os olhos, estava frente ao espelho.

terça-feira, 15 de setembro de 2015

Em busca do Neston perdido

    Acordei com uma vontade inexorável de comer Neston. Fui em busca de meus sonhos. No horizonte, o sol preparava seu leito para repousar: os estabelecimentos comerciais estavam à beira de fechar. Não permiti que isso me abatesse. Saltei da cama no ímpeto irredutível de quem está determinado a ultrapassar todas as barreiras e corri. Corri contra o tempo e contra o espaço que me separavam da mercearia mais próxima. Na rua, enfrentei quimeras mitológicas, grandes e vermelhas (muito embora haja algum dissenso, já que alguns camponeses semi daltônicos teimosamente insistem que são laranjas) com os dizeres "Santa Cândida" e "Capão Raso" em sua testa monumental. Como sou um exímio desavisado, por muito pouco não fui devorado por um desses monstros, que trilhava seu caminho em sentido contrário ao que eu estava habituado. Ao fundo, os pilares das acrópoles reluzindo ao sol poente pareciam recrudescer meu instinto de sobrevivência; estou certo de que Atena tem algum dedo nisso.
    Não encontrei o tal Neston na primeira loja na qual me aventurei a entrar. Nem na segunda, tampouco na quinta. Chorei? Chorei, mas ninguém precisava saber. Degustava mentalmente a tal farinha láctea do Olimpo e desejava acreditar que nem mesmo o Oráculo saberia os motivos pelos quais não haveria um mero pacote de Neston no centro da Pólis de Curitiba.
     Mas foi secando as lágrimas que vi um anúncio ao longe. Um mercadinho escondido nas profundezas do esquecimento ainda jazia aberto. De esperança renovada e orgulho guardado no bolso, corri para mais uma jornada em busca do Neston perdido. Encontrei-o numa estante ao fundo do estabelecimento; uma luz angelical iluminava o pacote e as partículas de poeira, que bailavam no ar ao som de quinhentas mil sonatas. O preço, nada módico, saltou aos olhos e me fez repensar por alguns segundos se valeria a pena gastar tantos dracmas numa porção tão pequena de manjar dos deuses. Ao fim, concluí que não voltaria para o meu lar sem aquilo que me dava sentido. Vislumbrei o pacote de Neston colorindo meus dias e resplandecendo minhas manhãs e decidi que era aquilo que eu queria para a minha vida, ainda que custasse os meus dois olhos, como custou a Édipo. Foi exatamente num impulso vertiginoso que, com as mãos nuas, reivindiquei aquilo que era meu por direito, ou por destino, se assim preferir.
    Levei também duas goiabonas, em homenagem a uma amiga muito querida, e um pacote de biscoito de polvilho, cujo tamanho chegava a ser maior do que minha gana pelo Neston. Nesse processo, esqueci o essencial. Ao chegar em casa e abrir o Neston com uma avidez desmedida pelo cereal, percebi que não havia comprado leite. O chão se abriu sob meus pés. Eu teria certamente regado a ambrósia com lágrimas, se assim o pudesse, mas minhas lágrimas já haviam se esgotado, e o último resquício de esperança também.
    Se tudo isso foi real? Tomo a a liberdade de responder com outra pergunta: o que é real? Foi sim, em grande medida, real, mas esta é uma pergunta que esvazia todo o propósito deste relato.
    De qualquer forma, questões metafísicas à parte, lamento desapontar o leitor caso este estivesse aguardando, inquieto em seu assento, um desfecho jubiloso e compreensível. Ainda que às vezes pareça um grande conto de fadas, a vida nem sempre tem um final feliz. Muitas vezes seu fim pode ser premeditado, sem sentido, tão esfacelado quanto o Neston seco que jaz agora sobre minha pia.

domingo, 30 de agosto de 2015

Iceberg

   Dudu era uma criança quieta. Excessivamente quieta. Sempre estava acompanhado de seus fiéis fones de ouvido; no carro, na escola, na mesa de jantar. Assim, ele bloqueava as duas vias de comunicação: não precisava falar ou mesmo dar-se ao trabalho de ouvir. A verdade, no entanto, era que os fones estavam quase sempre estavam desligados. Só os usava para evitar que fosse incomodado, mas o fato é que ouvia tudo o que as pessoas diziam. Diziam, sobre ele e sobre os mais diversos assuntos, verdadeiros impropérios. Faziam devaneios mirabolantes, construíam suas verdades sob mentiras e acabavam por acreditar nas próprias ilusões propagadas. Ao fim de cada dia, Dudu estava certo de que fazia bem em isolar-se em sua própria mente.
    Por laços do destino e pela ascendência interplanetar, como diriam os oráculos do misticismo, ou talvez por uma mera junção entre oportunidade de ocasião e disposição de agir, Dudu conheceu Caio, um colega de sala um ano mais velho. Foi justamente quando este último viu de relance um adesivo de uma banda no caderno do menino e puxou assunto, ignorando o professor, que conduzia sua aula com o mesmo entusiasmo de quem comparece a um enterro. Estudavam juntos já havia dois anos e, se dependesse da boa vontade de Dudu de fazer novas amizades, estudariam por mais três sem trocar uma palavra.
    O que Dudu tinha de introvertido, Caio tinha de comunicativo. Conversava com todos e adequava, com certa fluidez e facilidade, sua personalidade às pessoas e aos momentos diferentes. Parecia querer causar uma boa impressão. Ao dialogar com uma pessoa, fazia questão de perguntar sobre seus gostos gastronômicos. Ora, quer coisa mais pessoal e, ao mesmo tempo, universal, que comida? Bobeira que o idioma mundial seja o amor; em verdade, este está em falta. Assunto verdadeiramente universal é comida. Além disso, este é um tema sem riscos; você jamais encontrará alguém que diga que não gosta de comida. O mesmo não se aplica a música, por exemplo.
     Caio muito frequentemente se pegava pensando o que diabos passava pela cabeça de Dudu. Enquanto ele, tagarela, articulava e exteriorizava seus pensamentos como que numa necessidade crescente em impor-se diante de um mundo com ideias tão erradas, o amigo se enclausurava numa concha e, lá, trancava suas opiniões a sete chaves. É evidente que, com o tempo, essa amizade floresceu, e o maior sinal disso era que Caio era uma das poucas pessoas para quem Dudu tirava os fones de ouvido. Assim, naturalmente, o mais velho conseguia, ocasionalmente, ter acesso a uma ou outra ideia de Dudu; porém, apesar de ser possível pescar alguns de seus pensamentos, isso só se dava mediante algum esforço, enquanto a maior parte dos pensamentos continuava submersa no fundo do oceano que era sua mente.
    Não era um tipo de incompreensão angustiante, mas havia, sim, uma certa inquietude que, para ele, tornava essa questão intrigante. Eram poucas as coisas para as quais Caio não tinha uma teoria; a introjeção de Dudu não seria diferente. "As pessoas mais silenciosas possuem as mentes mais barulhentas", Caio disse num disparate intelectual durante uma dessas conversas que tinha consigo mesmo. Anotou na penúltima página de seu caderno, para assim não esquecer tamanho jogo de palavras. Era arriscado dizer com toda a certeza que esta teoria era verídica, mas era muito provável que sim. Ora, não é preciso ver todo o iceberg para concluir que ele não pode ser plenamente compreendido apenas por sua ponta.
    Quando se pensava numa comparação entre os dois amigos, o que vinha à mente era uma curiosa mescla entre discrepância e semelhança. Sobre um contraste de personalidades e uma convergência de interesses foi construída uma amizade, bloco por bloco. Duas partes de um quebra-cabeça: mesmo sendo opostos, encaixavam-se.

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Peter Pan às avessas

    Beep beep. Beep beep. Às seis em ponto, o despertador cobrava de Pedro as horas mal dormidas. A água quente do chuveiro nunca estava quente o suficiente, ao contrário do café de Dona Neusa, que sempre estava quente demais; pelo menos para ser bebido num só gole. A pressa obrigava Pedro a queimar sua língua de segunda a sexta. Os ponteiros marcando seu turno de trabalho não iriam esperar.
    Em sua adolescência, Pedro adorava ouvir música, dos mais diversos tipos. Teve diversas fases cujos estilos foram desde os mais góticos do submundo, passando por sertanejo, até os eletrônicos das baladas noturnas. Não importava o que fosse; o importante era ter música. Agora, porém, sequer lembrava o que era música. Não tinha tempo para tolices. No escritório, só o barulho de vários telefones tocando ao mesmo tempo, acrescidos dos sons internos da mente tempestuosa de problemas.
    Sua diversão, que um dia já fora regada à base de calorosas conversas com os amigos e competições amistosas no único fliperama da cidade, agora se resumia a passar as noites sozinho em um canto empoeirado do bar. Começou a frequentar o Bar do Arnaldo havia muitos anos, após um dia estressante (como se todos não o fossem). A frequência começou a aumentar paulatinamente e, em um determinado ponto, já nem sabia porque ia. Estressado ou não, estava tão habituado com aquilo que passou a fazê-lo de forma mecânica, talvez sob uma distante esperança de que retornasse o prazer que um dia o álcool lhe fornecera como válvula de escape, de modo a jamais ter se esvaido. Ou talvez por mero comodismo, quem sabe.
    Como um animal selvagem que dá voltas em círculos, exasperado, sem saber para onde correr, justamente por ser não ser capaz de refletir do que está correndo, Pedro era infeliz e, incapaz de identificar os motivos, culpava a tudo e a todos; exceto a suas próprias escolhas. Vivia todos os dias, mas morria pouco a pouco a cada um deles.

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Gelatina

    Era minha primeira vez na cidade. Um amigo, um dos mais pacientes que já tive, acompanhava-me pelo Passeio Público e não reclamava quando eu, turista do interior de outro estado, parava a cada dois minutos para tirar fotos.
    Perguntei:
    — Aquilo é uma capivara?
    Eu não fazia ideia do que essa pergunta desencadearia.
    Aparentemente, os dois anos de vivência na cidade não lhe passaram muitos conhecimentos sobre biologia, pois ele não soube me responder.
    — É uma cotia — disse a curiosa senhorinha ao meu lado.
    Eu jurava que cotia era um pássaro. Ri de mim mesmo e sorri para a mulher.
    — Gosto muito de animais, sabe? Minha mãe, que Deus a tenha, me trazia aqui antes mesmo de eu aprender a andar. Venho no Passeio Público há mais de setenta anos!
    Uma moça que estava passando parou para observar as cotias e, como quem não quer nada, acabou prestando atenção na entusiasmada senhorinha de cabelos brancos, que agora parecia feliz em ter uma audiência de inimagináveis três pessoas. Ela continuou:
    — Aliás, eu não gosto dos animais, eu amo os animais. Porque, bem... Gostar deles todo mundo gosta, não é? Principalmente no churrasquinho de domingo, no espeto. Mas amar, mesmo, é difícil.
    A mesma curiosidade despretensiosa que me fez perguntar sobre qual espécime de animal seria aquela que roía as cenouras fez com que eu soltasse também a próxima pergunta, em tom amigável de quem tenta conectar os pontos do que foi dito antes.
    — Então a senhora é vegetariana?
    Seus olhos arregalaram para mim.
    — Oh... Não, não sou. Mas gostaria muito de ser! — Sorriu.
    Não havia sido só eu; a moça que havia dado uma rápida pausa em sua caminhada (ou, pelo visto, não tão rápida, pois ainda estava absorta na conversa) também achou engraçado e riu um pouco.
     Continuou falando, e por um momento percebi como seus olhinhos brilhavam quando alguém a ouvia. Não tenho certeza como, mas o fato é que o assunto chegou em gelatinas vegetarianas.
    — Como assim? — perguntei eu. — Todas as gelatinas já não são vegetarianas?
    — Não, não! De jeito nenhum. As gelatinas de mercado são feitas de ossos de animais.
    Primeiro descobri que cotias não eram pássaros, e agora isso. Era um dia de descobertas. Fiquei boquiaberto, talvez mais por querer mostrar interesse na conversa do que propriamente por surpresa.
     A senhora, que por algum motivo carregava uma bolsa vermelha de papelão com escritas orientais estampadas, disse que havia uma receita de muitos séculos em sua família sobre como fazer gelatina vegetariana, e que seu neto adorava. Acabou contando sobre como teve que ir a uma cidade próxima para conseguir uma consulta médica para o pequeno menino, e sobre como "é uma onça quando mexem com sua família", mas não perdeu o fluxo de raciocínio nem por um momento: voltou à receita de gelatina vegetariana.
    Você, leitor ou leitora, mal deve estar aguentando-se na cadeira, tamanha a curiosidade para aprender a tal receita. Receio, porém, que não a lembro; e ainda que lembrasse, revelar esta fórmula seria um desrespeito à tradição familiar da amiga que fiz no Passeio Público. Mas se isso ajuda, lembro que um dos ingredientes é — pasme — folha de louro.
    Percebendo que o assunto talvez tivesse se prolongado até o limite do que seria socialmente confortável, a velhinha despediu-se. Minutos depois, minha mente persistia em pensar sobre o episódio que acabara de acontecer.
    A senhora possuía uma oratória de exímia narradora, além de gestos muito firmes. As veias saltadas em suas mãos davam a seu discurso um peso de autoridade — uma autoridade que somente a experiência de muitos anos poderia dar a alguém.
    Percebi que eu, meu amigo e a moça da caminhada demos um grande presente à adorável senhorinha aquele dia. Tudo o que ela desejava era alguém que a desse ouvidos. Reconheci parte de mim nela, e decidi que ficaria feliz se chegasse a sua idade com metade da lucidez que tinha.

domingo, 19 de outubro de 2014

Caqui em números

    Os números sempre encantaram Ian. Não por suas inúmeras operações e funcionalidades algébricas que esbanjam abstração, mas pelo fascinante fato de que absolutamente tudo pode ser quantificado, ainda que a seu próprio modo.
   A matemática dava a Ian uma certa sensação de controle, principalmente sobre coisas que não podem ser controladas. Peguemos o tempo como exemplo: por mais impossível que seja fazê-lo passar mais devagar, Ian sentia-se mais seguro se checasse seu relógio em intervalos pontuais para certificar-se de que tudo ia conforme o planejado.
    O mesmo valia para as finanças. Apesar de sua mesada esvair-se com uma velocidade incrível, Ian insistia em tabelar e fazer gráficos sobre os gastos. Alguns amigos próximos chamavam-no inclusive de caxias, e talvez não estavam tão errados em pensar que o garoto era um pouco sistemático. Entretanto, a certeza de saber exatamente onde estavam indo suas poucas células coloridas era reconfortante.
    Era quase uma questão paradoxal: Ian usava a abstrata matemática em coisas aplicáveis e efetivas de seu dia a dia, de modo a reverter a abstração desta e da própria realidade.
    Já parou para pensar — e lhe garanto que Ian já — que uma sequência de números pode conter as coordenadas geográficas do local de sua morte, seguidas pela exata data e hora? E isso se aplica mesmo às coisas mais simples. O preço do quilo do caqui na feira, a quantidade de nuvens num dia ensolarado, e até mesmo o telefone de alguém amado. Singelos números com um significado maior do que as pessoas poderiam imaginar, especialmente se o amor de sua vida for fã de caquis e estes, por sua vez, fossem ameaçados por uma chuva em potencial.
    Tudo estava conectado, embora nem todos conseguissem enxergar as vírgulas e as operações entre tantos algarismos.

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Joaninha

    Com as costas arqueadas e um andar em trancos, ela chegava à escola procurando não anunciar sua presença. Seus olhos eram recobertos por pesadas pálpebras e se escondiam sob as grossas lentes dos óculos; em seu rosto se manifestava uma puberdade que insistia em estender-se por mais tempo do que o devido. Aquelas manchas eram, na verdade, resultado de uma incessante tentativa de espremer as espinhas e cobri-las com maquiagem, para impedir que ela se sentisse ainda pior consigo mesma.
    Sentava-se em um canto com sua mochila roxa e, enquanto os demais alunos iam chegando, sentando-se e conversando entre si, seus olhos fugiam furtivamente da página 42 do livro que estava lendo para observá-los. Por trás do fundo de garrafa, seus olhos eram curiosos e amigáveis; contudo, tímidos demais para deixar que as outras pessoas percebessem.
    Gostava muito de prestar atenção nos papos divertidos das meninas que sentavam ali perto. Participava ativamente da conversa, apesar de fazê-lo exclusivamente em seus pensamentos. Observava a página amarelada do livro para disfarçar, mas sua boca não resistiu e, sem querer, esboçou um rápido sorriso quando a menina de arquinho contou o que acontecera no dia anterior, fazendo as amigas — inclusive as que não sabia que tinha — caírem no riso.
    Não digo seu nome pois não o sei. O fato é que, após observá-la durante várias semanas, decidi chamá-la de Joaninha. Não ao acaso, claro; via nela um pequeno inseto, silecioso, inseguro e desconhecedor da beleza que possuía. Achei melhor não chegar perto. Seu sorriso era tão frágil e cauteloso quanto o próprio andar de uma joaninha, que toma o cuidado de parar quando alguém olha.
    Perdão, Joaninha, mas você não é invisível. O que falta às pessoas é uma pitada de sensibilidade e ternura no olhar para que fique bem clara a luz que há em você.

sábado, 13 de setembro de 2014

Ursinho de pelúcia

    Antes mesmo de aprender o bê a bá, Valéria aprendeu também que havia de ser forte. Pelo menos foi o que ouviu de seu pai, ao que ele enxugou as lágrimas que escorriam em seu rosto no primeiro dia de aula e partiu, deixando-a sozinha.
    Junto com a puberdade, vieram o batom, o brinco e o sapato de salto alto. Valéria fazia tudo que estava a seu alcance para passar uma boa impressão às amigas da rodinha de amizade. Comprava a revista que estava em voga, fofocava sobre o novo namorado da cantora que todas as meninas de sua idade gostavam e evitava usar os óculos em público, pois "deixavam-na feia"; sem perceber, revirava sua personalidade ao avesso para agradar as amigas.
    Enquanto enxaguava o xampu alguns anos depois, arrependia-se por ter se sujeitado a tudo isso. Prometeu para si mesma que, daquele momento em diante, faria diferente. Seria diferente.
    Colocou os óculos sobre o nariz, a maleta de couro nas mãos e foi à luta. A primeira de suas muitas batalhas foi num lustroso prédio de espelhos negros. Entrou de cabeça em pé, lembrando-se do que seu pai havia lhe dito quando pequena.
     Conseguir o emprego foi fácil; difícil mesmo foi conquistá-lo dia após dia. Sua postura e seu tom de voz eloquente deixava bem claro que ninguém passaria por cima dela novamente. Carregava na ponta da língua uma retórica que mais parecia uma navalha. Tornou-se um rolo compressor de terno, tamanco e perfume.
    Já não tinha mais seu pai. Todas as noites, ao deitar-se, Valéria abraçava seu ursinho e sentia como se aquela moça dona das próprias pernas voltasse a ser aquela pequena menina que tinha de virar-se sozinha. Lembrou-se de alguns coleguinhas de classe que, à época, sugavam-na com os olhos, curiosos, julgando que Valéria seria covarde por chorar em público. A verdade, no entanto, é que todos ali possuíam o mesmo sentimento de desespero, mas a única corajosa o suficiente para demonstrá-lo havia sido ela. Ela era forte; mais forte do que jamais imaginou.